terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
OS DONOS DO SENADO
A Murici dos Calheiros, em Alagoas, tem vários
recordes. O mais triste é o de analfabetismo: mais de 40% da população entre os
26 mil habitantes. O senador é produto desta miséria
Artigo – Marco Antonio Villa
A República brasileira nasceu sob a égide do
coronelismo. O federalismo entregou aos mandões locais parcela considerável do
poder que, no Império, era exercido diretamente da Corte. Isto explica a rápida
consolidação do novo regime justamente onde não havia republicanos. Para os
coronéis pouco importava se o Brasil era uma monarquia ou uma república. O que
interessava era ter as mãos livres para poder controlar o poder local e
exercê-lo de acordo com seus interesses.
Mesmo durante as ditaduras do Estado Novo e
militar, o poder local continuou forte, intocado. A centralização não chegou a
afetar seus privilégios. Se não eram ouvidos nas decisões, também não foram
prejudicados. E quando os regimes entraram em crise, na “nova ordem” lá estavam
os coronéis. Foram, ao longo do tempo, se modernizando. Adaptaram-se aos novos
ventos econômicos e ao Estado criado a partir de 1930.
O fim do regime militar, paradoxalmente, acabou
dando nova vida aos coronéis. Eles entenderam que o Congresso Nacional seria —
como está sendo nas últimas três décadas — o espaço privilegiado para obter
vantagens, negociando seu apoio a qualquer tipo de governo, em troca da
manutenção do controle local. Mais ainda, a ampliação do Estado e de seus
recursos permitiu, como nunca, se locupletar com os bancos e empresas estatais,
os recursos do orçamento federal e, mais recentemente, com os programas
assistenciais.
A modernização econômica e as transformações
sociais não levaram a nenhuma alteração dos métodos coronelísticos. A essência
ficou preservada. Se no começo da República queriam nomear o delegado da sua
cidade, hoje almejam uma diretoria da Petrobras. A aparência tosca foi
substituída por ternos bem cortados e por uma tentativa de refinamento — que, é
importante lembrar, não atingiu os cabelos e suas ridículas tinturas, ora
acaju, ora preto graúna.
Não há nenhuma democracia consolidada que tenha a
presença familiar existente no Brasil. Melhor explicando: em todos os estados,
especialmente nos mais pobres, a política é um assunto de família. É rotineiro
encontrar um mesmo sobrenome em diversas instâncias do Legislativo, assim como
do Executivo e do Judiciário. Entre nós, Montesquieu foi tropicalizado e
assumiu ares macunaímicos, o equilíbrio entre os poderes foi substituído pelo
equilíbrio entre as famílias.
Um, entre tantos tristes exemplos, é Renan
Calheiros. Foi eleito pela segunda vez para comandar o Senado. Quando exerceu
anteriormente o cargo foi obrigado a renunciar para garantir o mandato de
senador — tudo em meio a uma série de graves denúncias de corrupção.
Espertamente se afastou dos holofotes e esperou a marola baixar.
Como na popular marchinha, Renan voltou. Os
movimentos de protesto, até o momento, pouco adiantaram. Os ouvidos dos
senadores estão moucos. A maioria — incluindo muitos da “oposição” — simpatiza
com os seus métodos. E querem, da mesma forma, se locupletar. Não estão lá para
defender o interesse público. E ridicularizam as críticas.
Analiticamente, o mais interessante neste processo
é deslocar o foco para o poder local dos Calheiros. É Murici, uma paupérrima
cidade do sertão alagoano. Sem retroagir excessivamente, os Calheiros dominam a
prefeitura há mais de uma década. O atual prefeito, Remi Calheiros, é seu irmão
— importante: exerce o cargo pela quarta vez. O vice é o seu sobrinho, Olavo
Calheiros Neto. Seu irmão Olavo é deputado estadual, e seu filho, Renan, é
deputado federal (e já foi prefeito). Não faltam acusações envolvendo os
Calheiros. Ao deputado estadual Olavo foi atribuído o desaparecimento de 5
milhões de reais da Assembleia Legislativa, que seriam destinados a uma
biblioteca e uma escola. A resposta do Mr M da política alagoana foi agredir um
repórter quando perguntado sobre o sumiço do dinheiro. E teve alguma
consequência? Teve algum processo? Perdeu o mandato? Devolveu o dinheiro que
teria desviado? Não, não aconteceu nada.
E a cidade de Murici? Tem vários recordes. O mais
triste é o de analfabetismo: mais de 40% da população entre os 26 mil
habitantes. De acordo com dados do IBGE, o município está entre aqueles com o
maior índice de incidência de pobreza: 74,5% da população. 41% dos muricienses
recebem per capita mensalmente até um quarto do salário mínimo. Saneamento
básico? Melhor nem falar. Para completar o domínio e exploração da miséria é
essencial contar com o programa Bolsa Família. Segundo o Ministério de
Desenvolvimento Social, na cidade há 6.574 famílias cadastradas no programa
perfazendo um total de 21.902 pessoas, que corresponde a 84,2% dos habitantes.
Quem controla o cadastro? A secretária municipal de Assistência Social? Quem é?
Bingo! É Soraya Calheiros, esposa do prefeito e, portanto, cunhada de Renan.
O senador é produto desta miséria. Em 2007, quando
da sua absolvição pelo plenário do Senado (40 votos a favor, 35 contra e seis
abstenções), seus partidários comemoraram a votação como uma vitória dos
muricienses. Soltaram rojões e distribuíram bebidas aos moradores. E os mais
fervorosos organizaram uma caravana a Juazeiro do Norte para agradecer a padre
Cícero a graça alcançada…
Porém, o coronel necessita apresentar uma face
moderna. Resolveu, por incrível que pareça, escrever livros. Foram quatro. Um
deles tem como título “Do limão, uma limonada”. Pouco antes de ser eleito
presidente do Senado, a Procuradoria-Geral da República o denunciou ao STF por
três crimes: falsidade ideológica, uso de documentos falsos e peculato. Haja
limonada!
Marco Antonio Villa é historiador e professor da Universidade Federal de
São Carlos, de São Paulo
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